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Olga de Mello fala sobre a valorização de relatos de minorias e o poder da representatividade diversa na literatura

20 de maio de 2024

Entre os autores indicados por Olga estão Benny Briolly, RuPaul e Elisa Lispector. (Fot0: Freepik.com)

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Olga de Mello

Em meados dos anos 1990, o crítico norte-americano Harold Bloom queixava-se que o mundo acadêmico passara a desprezar os cânones do pensamento, dando mais atenção a “esse monte de esterco chamado cultura popular” do que a Proust, Shakespeare ou Tolstoi. “A Escola do Ressentimento fica tagarelando sobre poder, raça, gênero: estratagemas carreiristas, que não têm nada a ver com os injuriados e insultados, cujas vidas jamais vão melhorar pela leitura dos maus versos escritos pelos que se dizem oprimidos”, clamava Bloom, que morreu em 2019, sem reconhecer que o esterco permite o florescer de novas espécies.

O mercado editorial mundial valoriza os relatos dos oprimidos há tempos. Mulheres, homossexuais, transgêneros e incontáveis representados pela sigla LGBTQIA+ têm publicado suas ideias e experiências de vida, ao lado dos que cresceram em países explorados por invasores de outras nacionalidades. Boa parte desses relatos e peças ficcionais usam o linguajar das comunidades ignoradas pela cultura eurocêntrica. Muitas dessas obras serão esquecidas no futuro, mas, no momento, são imprescindíveis para fortalecer a inclusão em uma sociedade multifacetada. As lutas identitárias não se limitam mais a desmistificar o patriarcado ou dar protagonismo a minorías étnicas. Se as editoras correm atrás das histórias de quem rompeu com um destino biologicamente programado, existe um público em busca dos depoimentos de quem desafiou sua natureza. A seguir, alguns exemplos. 

No país que registra o maior número de transsexuais assassinados no mundo – não se contabiliza a subnotificação nem aqui, nem em outras nações -,  a coragem pauta militantes como Benny Briolly, vereadora de Niterói, que conta sua trajetória em Mulher da vida – Narrativas de um corpo político (Oficina, R$58), desde a criação em uma família evangélica, passando pela transição de gênero e conversão ao candomblé. Na busca de respostas para seus questionamentos existenciais, aos 17 anos Benny foi pastor de uma congregação até romper com a crença e entrar para a militância política. O livro é dedicado à avó, Nilá, a única da família a apoiar a decisão de Briolly, embora continuasse profundamente religiosa, pois, como explica a neta, ela fazia da igreja seu meio de socialização no único ambiente que o marido lhe permitia frequentar. A história de Briolly não tem um tom queixoso, mas uma incitação ao engajamento nas questões sociais. 

Talvez a drag queen mais conhecida no mundo, RuPaul fala de suas origens e do início de carreira em A casa dos significados ocultos (Intrínseca, R$53,90). São recordações recheadas por mágoas exorcizadas no palco. Melancólico ao lembrar do temperamento explosivo da mãe e da dispersão do pai, que pegava os filhos nas férias sem se envolver diretamente na criação, RuPaul contrabalançou a educação severa com a exuberância artística, que lhe rendeu doze prêmios Emmy, além de um Tony. Drogas e amores passageiros não o tiraram do objetivo profissional, nem o afastaram da família, que, apesar das críticas, é a referência de sua formação. 

Vindo ao encontro de um drama enfrentado por pessoas no mundo inteiro, No exílio (José Olympio, R$64,90), de Elisa Lispector, conta a saga de uma família ucraniana que deixa a Europa nos anos 1920, fugindo do antissemitismo que tomava corpo no continente. Irmã mais velha da futura escritora Clarice Lispector, Elisa foi professora de música, crítica de arte, jornalista e escreveu doze livros. Neste romance autobiográfico, a angústia acompanha as constantes mudanças e a sensação de não-pertencimento da jovem, mesmo depois de naturalizada brasileira. Uma sensação comum aos cerca de 200 milhões de refugiados da atualidade.