Para Ler na Rede
Olga de Mello
Entrando em fevereiro após fechar janeiro com sete livros terminados mais uns quatro iniciados. O hábito de ler diferentes títulos ao mesmo tempo talvez contribua para essa demora em terminar os já começados, mas, paciência, sempre fui uma leitora poliamorosa. Tem o livro que anda na bolsa de trabalho, o que vai ao supermercado, os que se acumulam na mesa de cabeceira, os que se espalham casa afora. Sem contar os que chegam e precisam ser folheados, surgem os já lidos em priscas eras.
Dos concluídos em janeiro, está uma releitura clássica marcante na adolescência (cujo impacto se esvaneceu nessa segunda vista): Pais e filhos (Principis, R$ 24,90), de Ivan Turgueniev. À defesa do sistema de servilismo pelos aristocratas decadentes se contrapõe o anti-herói Bazárov, um médico que prega a dissolução social e de todos os valores tradicionais no século XIX pelo niilismo, um prenúncio da revolução socialista que aconteceria poucos anos depois. O conflito de gerações e a adoção das práticas convencionais por Kirssanov, o rico protagonista, mostra que nem sempre as teorias de derrubada do status quo conseguem derrotar o sistema. E o niilismo foi esquecido na História.
Uma das leituras em progresso também remeteu a pavorosos episódios, um deles contado na minha infância, o da Fera da Penha, a mulher que teria assassinado a filha de um amante casado. Na adolescência, um dos casos que abalou a opinião pública carioca envolvia outra femme fatale, Lou, condenada como cúmplice pelos assassinatos de dois ex-namorados. Depois veio o processo de uma mulher acusada de planejar a morte do ex-marido, um milionário. Recentemente, uma mulher teria envenenado enteados. Todos esses casos, acontecidos no Rio de Janeiro, são bem semelhantes a quatro crimes que surpreenderam o Chile no século XX, relatados pela chilena Alia Trabucco Zeran em As homicidas (Fósforo, R$ 65,90). Zerán, que estudou, mas não exerceu Direito, discute a figura da mulher aos olhos da lei, da sociedade e da cultura. Dificilmente se credita a agressividade de um assassino à principal vítima da violência doméstica. No entanto, quando à mulher é imputado um crime, a cobertura jornalística e o julgamento da sociedade parecem mais severos do que ao considerarem delitos cometidos por homens.
E entre as primeiras leituras do ano está uma que sai do desmanche do tsundoku – a pilha de livros abertos, manuseados, mas não lidos. Os anos (Fósforo, R$ 65,90), de Annie Ernaux, me levou a fazer as pazes com a ganhadora do Nobel de Literatura de 2022. Autor de autoficcção se confunde com a obra, então, difícil é deixar de considerar Ernaux monotemática. Porém, ela vai bem além disso. É primorosa ao montar lembranças e percepções do passar do tempo neste livro, que clama pela identificação do leitor em algum trecho. As reflexões mostram o quanto somos semelhantes como espécie, encarando pessoas e situações de forma muito parecida, apesar das diferenças socioculturais. Se em outros escritos, Annie Ernaux expõe sem pudor seu constrangimento pelo parentesco com pessoas de baixa escolaridade e profissões menores, em Os anos, esse desnudamento se apoia na universalidade conferida pelo viver.
Segundos de distração com as compras no supermercado e uma mãe perde de vista o filho de seis anos. Do episódio bastante frequente na vida contemporânea, a canadense Jennifer Hillier parte para criar uma trama de suspense engenhosa, na qual os piores instintos de uma mulher deprimida afloram quase como uma vingança contra seu destino. Em Pequenos segredos (Faro Editorial, R$ 59,90) não há personagem sem algo a esconder, fora o menininho, num thriller surpreendente e bastante realista.