Donatella e Annie Erneaux, duas cabeças coroadas | Diário do Porto


Para ler na rede

Donatella e Annie Erneaux, duas cabeças coroadas

2 de setembro de 2024

Donatella di Pietrantonio e Annie Ernaux, mergulhos na alma feminina

Compartilhe essa notícia:


Para ler na rede

Olga de Mello

 

Duas senhoras europeias vêm entusiasmando leitores do mundo todo com histórias sobre a alma feminina e os preconceitos que cercam mulheres planeta afora. Em artigo no jornal La Stampa esta semana, a romancista italiana Donatella di Pietrantonio, 62 anos, discorre sobre O lugar (Fósforo, R$ 55,90 ), da francesa Annie Ernaux, 83 anos. E embora o etarismo continue privilegiando as inovações de jovens autores, essas duas idosas do século passado encantam diversas gerações pela capacidade de transformar a reflexão do passado em discussão sobre o presente.

Annie Erneaux ganhou o Nobel de Literatura em 2022, “pela coragem e acuidade clínica com que descortina as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos da memória pessoal”, segundo divulgou a Academia Sueca. Já Donatella acaba de receber o Strega, maior prêmio literário da Itália, por seu romance L’etá fragile (A idade frágil), inédito no Brasil. Dela, por aqui, saiu apenas A devolvida (Faro Editorial, R$ 49,90), em 2019, a intrigante história de uma menina cujos pais adotivos entregam de volta para a família biológica.

Annie Ernaux ficou conhecida pelo público brasileiro um pouco antes de ganhar o Nobel. Desde então, seus romances autoficcionais têm sido lançados por aqui com regularidade. Muitos têm poucas páginas, como O lugar, em que aborda o constrangimento experimentado diante de sua própria origem. Depois de ascender da classe média baixa ao abraçar o Magistério, ela admite se envergonhar dos pais, pequenos comerciantes sem instrução. Seus textos têm cuidado quase científico, embora versem sobre o dileto tema de sua vida, amores, experiências, sentimentos, aborto, câncer, paixões. A personagem Annie é distante, solitária, sofrida, autoconstruída na busca do conhecimento e rejeição à família original, com uma autossuficiência analítica que beira a arrogância. Uma vida devotada à arte ou a arte que se transformou em vida, talvez.

Enquanto Ernaux diz que seu desejo de escrever foi a necessidade de representar fielmente o feminino na literatura, com a autenticidade que jamais encontrou nos autores homens, Donatella di Pietrantonio pretende, através de sua obra, defender os direitos pela qual sua geração de mulheres lutou arduamente e que hoje não são mais considerados garantidos.  Donatella vive na região de Abruzzo, onde nasceu, e ainda exerce a profissão de dentista, especializada no tratamento de crianças. Escolheu permanecer distante do centro literário do país, criando histórias baseadas em situações universais, como os assassinatos de duas jovens, durante uma excursão, em 1997, que ela relembra em L’età fragile. A menção ao crime questiona a idealizada segurança das pequenas localidades, além de ter como pano de fundo a violência de gênero e o medo perpétuo das famílias diante do “perigo lá fora”. A convivência com o trauma e a insegurança ultrapassam o período de interesse da mídia pelo crime, que não acompanha a retomada do dia a dia dos que sobrevivem, é outro dos subtemas desenvolvidos no romance.

No artigo no La Stampa, Donatella di Pietrantonio reflete a respeito de sua própria criação, seguindo experiências descritas por Annie Ernaux. O afastamento da francesa do pai se dá a partir da adolescência, quando adquire consciência sobre o que o conhecimento poderá lhe proporcionar. Donatella di Pietrantonio também buscou um preparo profissional bem diverso de sua família de camponeses, porém permanecendo próxima dos parentes. “Talvez eu tenha me livrado desse mundo ancestral contra o qual lutei por dentro, mas permaneci em órbita”, diz Donatella, que reconhece a rotina dura da família em sua infância, quando a mãe estava sempre trabalhando, sem tempo para fazer carinho na filha.

 

 

LEIA MAIS:

ACRJ e Firjan cobram mais ação pelo Museu Nacional

Galeria Scenarium reabre com homenagem a Selarón

PUC-Rio ensina programação para pesquisas em Ciências Humanas