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Com a palavra, as vítimas

Em julho, Olga de Mello se debruça sobre obras que tratam de meninas vítimas de pedofilia na ficção e na realidade

30 de julho de 2024

Autor de Lolita, Nabokov estudou casos de rapto de meninas antes de imaginar o narrador da obra. (Foto: freepik)

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Lolita, luz da minha vida, fogo de minha carne. Meu pecado, minha alma. Lo-lee-ta: a ponta da língua faz uma viagem pelo céu-da-boca para tocar os dentes. Lo. Lee. Ta.” 

O poético início de Lolita, o romance do russo/americano Vladimir Nabokov, que narra a obsessão de um pedófilo por sua enteada de doze anos, ainda gera polêmica, quase 60 anos depois de lançado. Alguns estudiosos dizem que Nabokov estudou diversos casos de rapto de meninas por adultos de meia-idade norte-americanos antes de imaginar o narrador de seu mais famoso livro, Humbert Humbert, um professor universitário apaixonado por garotas de 9 a 14 anos – as ‘ninfetas’, termo criado pelo escritor. 

Se Lolita ainda incomoda e escandalizou os leitores em 1958, já houve momentos em que a sociedade via beleza nos relacionamentos abusivos entre adultos e crianças. A paixão tem servido de justificativa para alguns homens desculparem seus relacionamentos abusivos com crianças. Foi assim que Vanessa Springora, aos 13 anos, na década de 1980, entendeu a aproximação do escritor francês Gabriel Matzneff, de 49. Um namoro aceito e até aplaudido pelo meio de intelectuais que a mãe de Vanessa frequentava. Matzneff era aclamado por defender o amor sem fronteiras etárias, descrevendo seus casos amorosos com meninos e meninas em livros, ensaios e textos premiados. Duas décadas mais tarde, quando o crime já estava prescrito, Vanessa lançou “O consentimento” (Verus, R$ 44,90), as memórias de sua adolescência abalada pela manipulação que sofreu e a dificuldade de ter uma rotina normal de estudos e trabalho depois de abandonada por Matzneff quando completou 15 anos. O livro levou à execração pública do escritor octogenário, que costumava publicar cartas de suas jovens namoradas em livros autobiográficos, como comprovação da maturidade emocional e sexual das meninas. 

Classificado como ‘romance’ na capa, “Melhor não contar” (Todavia, R$ 62,90), de Tatiana Salem Levy, tem epígrafe de Annie Ernaux, uma das referências atuais da chamada autoficção. Entremeando recordações dolorosas da infância e adolescência com decisões do presente, Tatiana trata de luto, saudade e o assédio sexual que sofreu por parte do padrasto, cujo nome só menciona ao lado de outros cineastas consagrados no Brasil. A mãe, Helena, jornalista bem-sucedida, vinha da geração que enfrentou a ditadura militar e viveu “o desbunde”, incentivando a vivência libertária das filhas. Ainda assim, Tatiana não revela o motivo por sentir-se incomodada ao conviver com o padrasto, que depois da morte da mãe, credita à paixão todas as tentativas de envolvimento sexual com a enteada. Enquanto Vanessa Springora faz um desabafo quase jornalístico sobre a violência que sofreu – e a conivência dos adultos que poderiam impedir e punir o predador –, Tatiana Salém Levy traz um desnudamento de alma com toques psicanalíticos através da saudade da mãe, da busca por relações madura e das contradições que uma vítima quase sempre experimenta ao tratar do tema. O artista celebrado que a atacou “por paixão” era o mesmo padrasto afável e gentil de sua infância? 

“Melhor não contar” é a expressão que Tatiana ouviu de várias pessoas quando indagava se a mãe deveria saber das investidas de seu padrasto. Boa parte das mulheres ainda se coloca contra os filhos em casos de assédio. Segundo Andrea Skinner, filha da canadense Alice Munro, Nobel de Literatura em 2023, a mãe ficou ao lado do padrasto ao saber que ele assediara a menina. Condenado pelo assédio sexual em 2005, o padrasto cumpriu discretamente uma pena de liberdade condicional, beneficiado pela fama da mulher, acredita Andrea, que se afastou da mãe, falecida em maio deste ano.