Diário do Porto

O ganha-pão dos literatos

Chico Buarque

Chico Buarque conta memórias e relembra infância no livro Bambino a Roma: Ficção (Reprodução Facebook)

Para ler na rede

Olga de Mello

Para Sérgio Buarque de Hollanda, danificar um livro era crime inafiançável, conta seu filho Chico Buarque no simpático Bambino a Roma (Companhia das Letras, R$ 79,90). Para se vingar do irmão que havia furado os pneus de sua bicicleta, Chico rasgou as páginas de um livro de Emilio Salgari, popularíssimo na primeira metade do século XX, por suas histórias de aventuras. A reverência ao livro descobri muito pequenina, embora não me recorde. Eu devia ter uns dois anos de idade e arranhava as lombadas dos volumes de uma prateleira baixinha. O único tapa que levei do meu pai veio certeiro. Papai ficou possesso – e depois, arrasado por reagir agressivamente diante da brincadeira de uma criancinha.

O episódio não me afastou dos livros, só acabou com disciplinas físicas de meu pai contra mim. Ele, que na juventude escrevia sua opinião sobre a leitura em páginas e páginas de seus livros, virou um zeloso guardião do estado físico de cada volume, inconformado com meu hábito de usar as “orelhas” como marcador. Raros de nossos livros têm alguma anotação – exceto quando a fúria dominava meu pai diante de traduções criminosas ou revisões negligentes. Essas observações são as únicas a que me permito também. A lápis, claro. Com o tempo, meu pai passou a deixar bilhetes dentro dos livros, que hoje, mais de 30 anos depois de sua morte, são meu reencontro com ele. Antes das lágrimas, vem o sorriso por suas recomendações, entre elas a do bilhetinho falando de seu sonho de me ver “tratar um livro com carinho”.

Antes de se dedicar à escrita, Chico Buarque tentou seguir Arquitetura e acabou ganhando a vida (e as maiores láureas) através da música. Sempre que precisa de dinheiro, dizem, faz show e lança disco. Com o cofre abastecido, vai escrever. O desvio de função de quem se dedica a atividades artísticas é mais do que comum. Escritores há muito vivem dupla jornada de trabalho em regime 7X7. Em entrevista à revista Quatro cinco um, a espanhola Rosa Montero reconhece que por 50 anos teve no jornalismo seu sustento.

“Não dá para viver de literatura e nem é bom ganhar a vida com o trabalho literário. A ficção deve ser o mais livre possível e não seria assim se você tivesse que pagar casa e comida com seus romances, se preocupando se vai vender ou não”, acredita a escritora, cujo primeiro sucesso, publicado no Brasil há cerca de vinte anos, A louca da casa (Todavia, R$ 69,90) ganha nova edição. Muito antes da autoficção virar moda, Rosa Montero criou uma farsa autobiográfica deliciosa, misturando o que seriam recordações com episódios e características de escritores conhecidos. O leitor se vê enredado pelo que seria a história da autora até descobrir que boa parte do texto é pura deliciosa invencionice. O Bambino de Chico é, segundo a classificação na capa, ficção. Será que o menino dançou mesmo com Alida Valli, mãe de seu colega de turma no colégio de padres em Roma? Nos anos 1950, molecotes podiam zanzar sozinhos de bicicleta cidade afora? A verdade é que lembranças de um octogenário, misturadas a algumas lendas, podem ser bem melhores que a realidade.

Clarice Lispector cuidou de separar sua vida particular da literatura. Já no jornalismo, que garantiu sua sobrevivência, dava opiniões e toques pessoais em crônicas e entrevistas para diferentes veículos, entre as décadas de 1940 e 1970. A atividade jornalística é quase obrigatória para escritores. Sem acanhamento, o poeta Ferreira Gullar explica que seu ofício “sempre foi” o de redator em jornal em uma das mais de 70 conversas da escritora com artistas, políticos e personalidades, reunidas em Clarice Lispector entrevista (Rocco, R$ 109). Da informalidade desses encontros surge um Brasil mais simples, em que a grande dama do teatro, Bibi Ferreira, ia à casa de Clarice para ser entrevistada e, na cozinha da escritora, fazia café para ambas. Ao ver Emerson Fittipaldi na fila do aeroporto, Clarice pede entrevista, mas, dentro do avião, quase se esquece do piloto, embarcando em conversa com a designer e amiga Bea Feitler, que estava no mesmo voo.  Distante da sisuda e profunda literária, surge uma Clarice Lispector bem-humorada, curiosa e determinada a informar e entreter, sem esquecer de destacar características que tanto encantavam as plateias da época, como os olhos claros de Chico Buarque, “o moço que todas as mães brasileiras sonham ter como genro”.


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