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Olga de Mello
“Para combater o aviltamento, começara a estudar quase em segredo a invenção da mulher por parte dos homens (…) desde a primeira e a segunda criações bíblicas até Defoe-Flanders, até Flaubert-Bovary, Até Tolstói-Karenina (…). Descobria por todo lado autômatos de mulheres fabricados por homens (…) matéria para a manufatura deles”.
História de quem foge e de quem fica, Elena Ferrante
No terceiro volume da Tetralogia Napolitana — que saiu agora em nova edição, em box, pela Biblioteca Azul, a R$ 159 —, a narradora Elena Greco analisa a criação de personagens femininas por escritores que criam figuras a partir de seus próprios desejos. São mulheres que correm atrás de novos tipos de vida fora dos casamentos, morrendo tragicamente ao fim de suas acidentadas trajetórias. O castigo é o prêmio pelo desafio às convenções.
A construção de personagens femininos vívidos, sem as fantasias masculinas que os norteiam nem sempre relegam as heroínas a destinos tão trágicos. Quando são mulheres que falam sobre mulheres, ali estão não apenas bons sentimentos, desvelo na maternidade, entrega total às paixões pela vida toda, busca de um príncipe encantado. Elena Ferrante quebra com esses clichês hoje, mas no século XVII, a inglesa Jane Austen tratou não apenas dos enlevos amorosos entre jovens casais, usando seu sarcasmo para evocar a sociedade patriarcal que tornara o casamento forma de sobrevivência para moças sem fortuna própria, impossibilitadas de trabalhar, uma indignidade como se hoje uma garota de classe média virasse faxineira ou empregada doméstica.
Séculos mais tarde, um roteiro pode ainda determinar o comportamento feminino na ficção: amor/paixão/casamento/decepção/ousadia/tragédia. Algumas escritoras suplantaram o nicho sexista, como Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e Virginia Wolf, embora todas reflitam, em alguma obra, sobre a realidade feminina. Até os livros destinados a um público ávido por romances “rosa”, destinados a mulheres, já vêm explorando temas dolorosos. Na lista dos mais vendidos há anos no Brasil, Assim é que acaba (Galera Record, R$ 47,90), de Collen Hoover, trata com surpreendente crueza da violência doméstica praticada por homens bem-sucedidos contra as mulheres com quem se casaram. O comportamento padrão abusivo – explosão violenta, arrependimento sincero, desculpas, retomada da convivência, novo episódio que detona a agressão – é descrito pelo ponto de vista das vítimas, prontas a perdoar os agressores até o momento em que a autopreservação determina o fim da relação.
Terminar um casamento disfuncional é opção inexistente para muitas mulheres como as personagens do contundente A queda do Imã (Tabla, R$ 60), da egípcia Nawal El-Saadawi, psiquiatra e ativista dedicada à defesa contra a violência doméstica, o fundamentalismo religioso e a opressão sistêmica. Além de uma vida de militância em órgãos internacionais, entre eles a ONU, Nawal teve uma vasta e reconhecida carreira literária que apoiava suas denúncias. O Imã desse romance fragmentado, com diversos narradores, discute o sistema legal de diversas nações teocratas, em que o maltrato à mulher tem respaldo estatal. Como indaga a protagonista, uma menina surrada por policiais: “Por que vocês sempre deixam o criminoso livre e matam a vítima?”. O crime da jovem é ser filha ilegítima de uma mulher que abandonou o marido.
Único local da casa de leitores compulsivos onde livros nem sempre encontram espaço, a cozinha ganha um novo guia que merece figurar entre panelas e temperos. Formada em 2013 entre os primeiros cinco colocados pelo Le Cordon Bleu Paris em Cuisine e Pâtisserie, a carioca Juliana Gueiros vem publicando no Instagram receitas para quem tem pouca intimidade com o fogão desde a pandemia. E nada de pratos de nouvelle cuisine, com maçaricos, espumas, ninhos e nuvens: Juliana ensina a preparar comida básica, reunindo receitas e dicas em Na cozinha (Intrínseca, R$ 99). Dividido em doze capítulos, o volume é fartamente ilustrado e dá até pena de deixar perto do fogão. Diferente de boa parte dos homens alçados a chefs de cuisine, que geralmente se apresentam como artistas da gastronomia, Juliana espera é aumentar a legião dos que preparam alimentação caseira, que tem aroma de “casa de mãe”. Mais feminista, impossível.